sexta-feira, 23 de maio de 2008
Arqueologia Cognitiva (Renato da Silva Queiroz)
As origens da arte, da religião e da ciência
A mente dos humanos modernos produz conhecimentos e os redireciona para propósitos diversos daqueles aos quais se aplicavam originalmente. Tal capacidade mental requer um cérebro poderoso e multifacetado, organizado de tal modo que os processos cognitivos em seu interior, a despeito de especializados, possam fluir e recombinar-se sem restrições. Disso decorrem a flexibilidade e a criatividade do comportamento humano.
O surgimento desse tipo de mente, única entre os seres viventes, é produto de um longo trajeto evolucionário, cuja pormenorizada reconstituição encontra-se neste instigante livro de Steven Mithen, arqueólogo inglês que, para tanto, recorre a saberes da biologia, antropologia e psicologia, entre outras disciplinas científicas. Todavia é o método arqueológico que o conduz pelas sendas das demonstrações.
"Se quiserem conhecer a mente, não procurem apenas psicólogos e filósofos: certifiquem-se de também procurar um arqueólogo", adverte Mithen, enfatizando que a mente humana resulta tanto da nossa história evolutiva quanto dos contextos em que os indivíduos se desenvolvem. A mente dos humanos modernos é fruto do processo de expansão cerebral, conhecido como "encefalização", e do desenvolvimento de inteligências especializadas, cujos conhecimentos, antes nelas aprisionados, se integraram graças ao mecanismo gerenciador exercido pela consciência. Essas inteligências múltiplas e o autor propõe a existência de pelo menos quatro delas: social, naturalista, técnica e lingüística, que se foram desenvolvendo de forma mais ou menos estanque ao longo do processo evolucionário, em resposta a numerosas pressões seletivas, se integraram, finalmente, na transição do Paleolítico Superior ao Médio.
Pode-se identificar o período em que se deu tal integração, caracterizada por uma enorme fluidez cognitiva, observando-se as primeiras manifestações de percepção estética traduzidas em obras de arte (figuras esculpidas e pinturas rupestres) e a emergência de representações religiosas. Escassas são as peças que se oferecem à reconstituição da pré-história da mente humana.
Até o aparecimento das primeiras modalidades de escrita, surgidas há uns 5.000 anos, os vestígios que nos foram legados pelos nossos ancestrais nos últimos 2,5 milhões de anos não vão muito além de utensílios de pedra, restos de alimentos, figuras fixadas em pequenas esculturas e pinturas rupestres. Entretanto esse exíguo material, submetido ao rigoroso exame do autor e por ele confrontado com o comportamento de chimpanzés e grupos de caçadores-coletores modernos, conferiu suporte às suas convincentes interpretações.
Um dos fundamentos da reconstituição empreendida por Mithen é o princípio da recapitulação, segundo o qual a ontogenia recapitula a filogenia, postulando o autor que se podem vislumbrar nas etapas de desenvolvimento mental da criança as fases da evolução cognitiva dos nossos ancestrais. Nessa medida, tem-se, num primeiro período evolucionário, uma inteligência geral, indiferenciada, incapaz de sustentar a elaboração de padrões complexos de comportamento, inteligência suficiente apenas para a aquisição de condutas relativamente simples, sujeitas a erros freqüentes e dependentes de um ritmo lento de aprendizado. Depois, despontam as inteligências especializadas, cada uma delas tomando conta de um domínio comportamental específico, com o que se amplia a capacidade das operações cognitivas.
Ocorre, porém, que nessa etapa intermediária os conhecimentos pertinentes a cada um dos domínios ainda estão contidos em seus módulos específicos (a imagem é a das lâminas de um canivete suíço), não se verificando, pois, significativo fluxo de informações entre eles. Finalmente, adquire-se a fluidez cognitiva, donde a dramática ampliação das capacidades mentais e a plena configuração da mente do homem moderno-criativa, flexível e imaginativa.
O mais importante arquiteto da mente, a seleção natural, processo lento e gradual, desprovido de direção ou de objetivos predeterminados, terminou por favorecer a integração das inteligências múltiplas, dando margem à riqueza dos processos mentais, que se traduzem em metáforas e analogias, e à nossa inesgotável imaginação.
Dessa perspectiva, a capacidade simbólica e os estados mentais que se expressam por meio da arte, da religião e da ciência, criações exclusivas do homem moderno, já germinavam nas mentes de nossos ancestrais.
Steven Mithen rastreou o percurso da construção dessa mente dotada de fluidez cognitiva, sem a qual os humanos seriam incapazes de construir e representar o ambiente culturalmente complexo que fizeram para si mesmos. Em seus comportamentos se entranham dimensões práticas e simbólicas, neles interligando-se profundamente a manipulação e a transformação de objetos físicos, coordenadas pela inteligência técnica, a interação com o mundo natural, orientada pela inteligência naturalista, a habilidade de reconhecer indivíduos e inferir os seus estados mentais, favorecida pela inteligência social, e a aquisição e os múltiplos usos da linguagem, possibilitados pela inteligência linguística.
O autor data as primeiras formas de expressão artística em aproximadamente 40 mil anos, situando-as no continente europeu e na "explosão criativa" do Paleolítico Superior. Contudo novas descobertas parecem localizá-las em terras africanas, há uns 80 mil anos. Mesmo estando corretas essas derradeiras estimativas, vê-se que a emergência do homem moderno é bastante recente. Logo, prematura pareceria qualquer conclusão quanto à capacidade dessa mente, tão complexa e cognitivamente tão fluida, de prover a nossa espécie não só das artes de subsistência como também - e sobretudo - de uma ciência que nos proteja da extinção.
(Fonte: Folha de São Paulo - Jornal de Resenhas - 13 de março de 2004)
RENATO DA SILVA QUEIROZ é professor do departamento de antropologia da USP.
A Pré-História da Mente Steven Mithen Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira Ed. Unesp
Nenhum comentário:
Postar um comentário